segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O problema da "solução conciliatória" do "movimento espírita"


É evidente que o religiosismo místico e moralista ditado pelo estatuto da Federação "Espírita" Brasileira por inspiração no livro Os Quatro Evangelhos de Jean-Baptiste Roustaing gerou uma grave crise, aliada ao poder centralizado e vitalício dos dirigentes da entidade que oficialmente "representa" o Espiritismo no Brasil.

Essa crise veio já desde o século XIX, criando dissidências mediante situações bastante tensas e abalando seriamente a reputação dos que abraçavam a causa roustanguista, mas eram dotados de carisma e vinculados a uma projeção popular, como Adolfo Bezerra de Menezes.

Mesmo atingindo seu ápice na década de 1970, com o poder centralizado de Francisco Thiesen e Luciano dos Anjos, a situação não se resolveu e o que se verificou no "movimento espírita" brasileiro foi a tendência predominante de uma "solução conciliatória", supostamente "unida em torno de Allan Kardec".

Observando com atenção o que se deu no "movimento espírita", incluindo as federações regionais, sejam estaduais ou municipais, que não tinham voz nem vez na FEB, e ídolos como Chico Xavier e Divaldo Franco, a tão prometida "recuperação do kardecismo" limitou-se a ser uma espécie de roustanguismo light, enxuto e que considerasse em tese as ideias originais de Kardec.

Tudo bem que é preciso conviver com as diferenças de pontos-de-vista ou de abordagens, mas até que ponto isso poderá levar o "movimento espírita" ao resgate das bases de Allan Kardec? Será válido apostar num "roustanguismo sem Roustaing" ou num "kardecismo com Chico Xavier e Divaldo Franco"?

O CASO DO PMDB

Na política, vemos como se dá a "solução conciliatória" no Brasil, em que não se consegue medir as divergências e limita-se a manter um "meio-termo", ou seja, um equilíbrio forçado entre a deturpação de ideais apenas contida em relação aos piores excessos, e a manutenção do que as idéias originais apresentam de mais genérico e manjado.

O PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) é o típico caso de um Brasil em que se concilia o ruim um pouquinho menos piorado e o melhor nem tão melhor assim quanto parece. É o método da mediocrização, em que se deixa em "bom termo" entre o ruim e o bonzinho, para manter os interesses dos privilegiados sem causar, ao menos, prejuízos seriamente visíveis.

O PMDB é o único partido remanescente da ditadura militar. Era o velho MDB que, com o fim do bipartidarismo imposto pelos militares, sobreviveu acrescentando o P de "partido" em sua sigla e a referida palavra em sua nomenclatura.

A origem do (P)MDB diz tudo: depois da cassação de mandatos de muitos políticos, numa "limpeza" ideológica tramada pelos militares que conquistaram o poder em 1964, esse partido, criado para forjar uma "oposição moderada" ao governo militar, reuniu sobretudo políticos menos combativos vindos do conservador moderado PSD, progressistas da UDN e ultramoderados do PTB.

Com o tempo, desenhou-se não um partido de cunho progressista moderado, mas uma agremiação partidária sem qualquer identidade, corrupta e por isso fundamentada na prática do fisiologismo político, que é uma espécie de "política de conveniências", em troca de benefícios políticos e econômicos de seus envolvidos.

Por isso, o PMDB reúne desde reacionários a populistas, todos empenhados tanto em adotar medidas autoritárias - como as caraterísticas do grupo político carioca, de Eduardo Paes, Sérgio Cabral Filho e Luiz Fernando Pezão - mediante uma postura falsamente progressista e democrática, que já ofereceu o exemplo clássico de José Sarney.

O PMDB é um partido capaz de se aliar tanto com PT quanto o PSDB, o DEM e o PSOL, sendo um partido camaleônico dentro da postura camaleônica do "país coração do mundo". Uma escolha falsamente democrática, que tenta resolver extremismos apenas costurando posturas mais "moderadas", sem perceber o quanto aspectos negativos continuam sendo preservados.

O "ESPIRITISMO" AINDA IGREJISTA, APESAR DO RESPEITO A ALLAN KARDEC

Nota-se, aliás, que o "movimento espírita", quando tenta pôr em "bons termos" sua trajetória, tentando conciliar os antigos roustanguistas, agora "reconhecendo" a necessidade de ser "fiel a Allan Kardec", continua mantendo seus problemas, apesar de tudo.

Nos anos 70, viu-se que a pressão feita por gente renomada como Herculano Pires, Deolindo Amorim, Jorge Rizzini, Gélio Lacerda e outros apenas fez com que se reduzisse o radicalismo roustanguista, criando uma situação insólita que muitos adeptos do "espiritismo" brasileiro ignoram.

Em vez do equilíbrio, tivemos a gororoba. As bibliotecas dos "centros espíritas" misturam traduções de livros de Allan Kardec de Guillon Ribeiro e Herculano Pires, que só são válidas a título de pesquisa comparatória. Juntam-se também livros teóricos do próprio Herculano com romances "mediúnicos" de gosto duvidoso, misturando alhos com bugalhos de tudo que é feito sob o rótulo "espírita".

Daí um "espiritismo" meio maluco em que ao mesmo tempo aprecia-se as lições precisas de Herculano Pires e a necessidade de seguirmos as ideias originais de Kardec, enquanto, por outro lado, continua-se consultando Chico Xavier (agora pelo seu legado) e Divaldo Franco, carregados de profundas abordagens igrejistas.

CHIQUISMOS E DIVALDISMOS

Daí as coisas não ficaram equilibradas, porém bem mais desequilibradas do que antes. Pelo menos, nos tempos do roustanguismo mais assumido, tínhamos uma oposição sistemática entre os que estavam com Allan Kardec e os que estavam com Jean-Baptiste Roustaing. Hoje temos aqueles que proclamam "fidelidade às bases originais de Kardec" e defendem idéias de Roustaing.

Temos meros desfiles de personalidades e assuntos científicos em vários artigos de cunho "espírita" escritos por igrejistas, e o "movimento espírita" também não resolveu problemas quando desfez de seu pudor anti-jornalístico - no sentido de vedar a abordagem de assuntos cotidianos "à luz do Espiritismo" - para falar de fatos cotidianos, fenômenos políticos e notícias da atualidade.

Há até mesmo a apreciação superficial de assuntos ainda não desenvolvidos, como a TransComunicação Instrumental (TCI) e o Magnetismo, enquanto muitos passistas sacodem as mãos sem saber sobre cabeças humanas ou copinhos de água, e supostos médiuns fazem de conta que receberam almas do além para escrever sempre as mesmas mensagens igrejistas e piegas.

Manteve-se o engodo que mistura análises (superficialmente) científicas e romances "mediúnicos" meramente folhetinescos. Muitos ouvem felizes, nos mesmos "centros espíritas", um palestrante falando do valor grandioso de Herculano Pires na Doutrina Espírita e outro dizendo bobagens roustanguistas adaptadas pelas obras da "série André Luiz".

Na prática, a atual fase do "espiritismo" brasileiro consiste numa apreciação dos ideais científicos de Allan Kardec e de seus seguidores brasileiros - sobretudo Herculano Pires - , mas sem afetar ideias herdadas do roustanguismo "descartado" que já haviam sido adaptadas há muito por Chico Xavier e Divaldo Franco.

A manutenção dos dois anti-médiuns no pedestal de totens "espíritas", sob o pretexto de que eles parecem, à primeira vista, "pontes de ligação" entre amigos kardecistas (como Carlos Imbassahy e Herculano Pires) e chefões da FEB (Wantuil de Freitas e Francisco Thiesen), só fez piorar as coisas. O kardecismo não se recupera com chiquismos ou divaldismos.

Afinal, continuamos sempre desaprendendo com as obras brasileiras que deturpam o Espiritismo, tidas como "complementares". De que adianta lermos livros de Kardec na tradução precisa de Herculano Pires e seus colaboradores, se depois vamos recorrer a Emmanuel e André Luiz, comovidos com a imagem adocicada do bom velhinho mineiro associada a Chico Xavier?

De que adianta lermos livros de Allan Kardec na tradução de Herculano e seus parceiros, apreciarmos e debatermos as ideias originais, se depois vamos ouvir Divaldo Franco dizer o contrário de tudo isso e fingirmos que são as "caraterísticas brasileiras", seduzidos pelo tom professoral e pelas entonações sacerdotais do anti-médium baiano?

Será suficiente jogarmos no lixo romances "mediúnicos" mais escandalosos, que de tão ruins não deixam sequer marca nos espiritólicos, se mantemos na cabeceira o Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, felizes acreditando na confortável "previsão" de que o país em que nascemos e onde vivemos será uma "potência mundial"?

Não seria melhor avaliarmos as retóricas e as simbologias para ver o quanto se manteve o desequilíbrio no "movimento espírita"? Na prática, jogamos fora gente "incômoda", como Roustaing, os Gasparetto, os romances de quinto escalão, os "criptógamos carnudos", mas mantivemos até mesmo as fraudes e equívocos cometidos pelos astros do "espiritismo" igrejista hoje poupados.

Deixamos de acreditar que podemos virar lesmas na próxima reencarnação ou mesmo reduzirmos a sermos glóbulos brancos nos sangues de nossos inimigos. Lemos ideias coerentes e sensatas do professor Allan Kardec, mas somos tentados a sonhar e acreditar que haverão gatinhos fofinhos e cãezinhos felpudos pulando e brincando nas colônias espirituais.

Esse é o maior problema do "espiritismo" brasileiro. Em tese, a "solução conciliatória" é louvável e saudável, mas na prática não conseguiu resolver os problemas que causaram as mais agudas crises no "movimento espírita". Elas continuam e continuarão acontecendo, até de forma bastante tensa, na medida em que são mantidas contradições e equívocos que marcam essa doutrina.

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