quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Artigo de Humberto de Campos: "Como Cantam os Mortos"

EDIÇÃO DE CARVALHOS E ROSEIRAS (1923), DE HUMBERTO DE CAMPOS, LANÇADA NO ANO DE SUA MORTE, 1934.

Dando continuidade ao artigo anterior, Humberto de Campos produziu outro, "Como Cantam os Mortos", em que dá sequência ao seu misto de ingenuidade e ceticismo, talvez apresentando uma dúvida que não deixava explícito no texto anterior, quanto à mediunidade de Chico Xavier, em que pese acreditar nas semelhanças entre os poemas espirituais e as obras originais dos autores atribuídos.

Ele até cita os trechos dos poemas do livro atribuído a alguns autores, acreditando que os mesmos preservem as caraterísticas estilísticas e estéticas das obras dos respectivos poetas feitos em vida. Mas, até pelos limites de espaço, ele não confrontou os poemas "espirituais" com os poemas autênticos do legado deixado pelos autores.

O texto está reproduzido integralmente abaixo, com as devidas atualizações ortográficas posteriores à reforma de 2009.

COMO CANTAM OS MORTOS

Por Humberto de Campos - Diário Carioca, n. 1205, Rio de Janeiro, 12 de julho de 1932.

O "Parnaso de Além-Túmulo" do sr. Francisco Cândido Xavier, cujos objetivos examinei em artigo anterior, merece trato mais grave demorado. Escutando a voz dos mortos, devemos identificá-la, para evitar quaisquer possibilidades de impostura. Vejamos, pois, como canta, ou escreve, Augusto dos Anjos, pela boca ou pela pena do espírita de Pedro Leopoldo:

"Louco, que emerges de apodrecimentos,
Alma pobre, esquelético fantasma,
Que gastaste a energia do teu plasma
Em combates estéreis, famulentos...

"Em teus dias inúteis foste apenas
Um corvo ou sanguessuga de defuntos
Vendo somente a cárie dos conjuntos
Entre as sombras das lágrimas terrenas.

"Vias os teus iguais, iguais aos odres
Onde se guarda o fragmento imundo,
De todo o esterco que apavora o mundo
E as ruins exalações dos corpos podres".

Casimiro de Abreu conserva, nas cordas da sua lira, feitas possivelmente com os restos dos seus nervos, a ingenuidade primitiva. E oferece-nos, nas rimas póstumas, a prova triste de que, mesmo além da vida, no selo mesmo da morte, as paixões não desaparecem. A saudade da pátria é conservada incólume, como se o morto não tivesse mudado de planeta, mas, apenas, de um país para outro. Ouçamos, para exemplo, o poeta das "Primaveras" oitenta e dois anos depois de desencarnado:

"Que terno sonho dourado
Das minhas horas fagueiras
No recanto das palmeiras
Do meu querido Brasil!
A vida era um dia lindo
Num vergel cheio de flores
Cheio de aroma e esplendores
Sob um céu primaveril.

"Se a morte aniquila o corpo
Não aniquila a lembrança:
Jamais se extingue a esperança
Nunca se extingue o sonhar!
E à minha terra querida,
Recortada de palmeiras
Espero em horas fagueiras
Um dia, poder voltar".

Antero de Quental continua triste e trágico no outro mundo, e disposto, parece, a suicidar-se de novo, para reaparecer neste. "À Morte" é um dos seus sonetos caraterísticos, exportados com endereço aos seus antigos admiradores e discípulos, por intermédio do "médium" mineiro:

"Ó Morte, eu te adorei, como se foras
O fim da sinuosa e negra estrada,
Onde habitasse a eterna paz do Nada
Sem agonias desconsoladoras.

"Eras tu a visão idolatrada
Que sorria na dor das minhas horas,
Visão de tristes faces cismadoras,
Nos crepes do silêncio amortalhada.

"Busquei-te, eu que trazia a alma já morta,
Escorraçada no padecimento,
Batendo alucinado à tua porta;

"E escancaraste a porta escura e fria,
Por onde penetrei no Sofrimento,
Numa senda mais triste e mais sombria".

A notícia que Antero nos dá não é, evidentemente, das mais agradáveis. A outra existência, para ele, não tem sido melhor do que esta. Ou sucederá isso em virtude do gênero de morte que ele escolheu? O homem que se mata engana, ou tenta enganar a Deus. E o castigo que este lhe inflige, consiste, possivelmente, em fazê-lo sofrer no outro mundo os mesmos tormentos que padecia neste. Em síntese: a morte, obtida pelo suicídio, não vale. Só é tomada em consideração aquela que Deus dá, isto é, que sobrevém naturalmente.

D. Pedro II continua, mesmo depois de morto, a fazer maus versos. Há uma antiga tradição literária, segundo a qual os melhores sonetos do ex-Imperador eram feitos pelo Barão de Loreto. Admitida essa versão, a conclusão a tirar dos decassílabos que se vai ler é que os dois andam, agora, por lá, separados. Escutemos o velho monarca:

"Magnânimo Senhor, que os orbes cria
Povoando o Universo ilimitado,
Que dá pão ao faminto, ao desgraçado,
E ao sofredor os raios da alegria;

"Se, de novo, no mundo, desterrado,
Necessitar viver inda algum dia,
Que eu regresse ditoso ao solo amado
Da generosa pátria que eu queria;

"Se é mister retornar a um novo exílio,
Seja o Brasil, lá onde eu desejara
Ter vertido o meu pranto derradeiro.

"Que eu novamente viva sob o brilho
Da mesma luz gloriosa que eu amara,
Na alcandorada terra do Cruzeiro".

Castro Alves continua condoreiro, e utilizando as mesmas imagens em que era mestre, na terra:

"E a gota d'água caindo
No arbusto que vai subindo
Pleno de seiva e verdor;
O fragmento do estrume
Que se transforma em perfume
Na corola de uma flor.

"E a dor que através dos anos,
Dos algozes, dos tiranos,
Anjos puríssimos faz;
Transformando os Neros rudes
Em arautos de virtudes,
Em mensageiros de paz!"

E Junqueiro, sem mudar de tema ou de rima:

"Na silenciosa paz do cimo do Calvário
Ainda e vê na Cruz o Cristo solitário.

"Vinte séculos de dor, de pranto e de agonia
Represam-se no olhar do Filho de Maria".

As poesias de Junqueiro continuam sendo, na outra vida, extensas em demasia. Ficam, por isso, aí, apenas duas parelhas, para amostra.

O "Parnaso de Além-Túmulo merece, como se vê, a atenção dos estudiosos, que poderão dizer o que há nele, de sobrenatural ou de mistificação. No primeiro caso, o outro mundo deve ser insuportável, com os poetas que lá se acham. E pior será, ainda, se houver, também, por lá, declamadoras...

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