quinta-feira, 9 de outubro de 2014
Jean-Baptiste Roustaing fez críticas violentas a Allan Kardec
Allan Kardec e Jean-Baptiste Roustaing se tornaram desafetos por iniciativa deste último, que não admitiu ser contrariado pelos questionamentos que o primeiro dava, com serena objetividade, aos volumes da obra Os Quatro Evangelhos, que Roustaing havia lançado e que, durante muito tempo, foi uma espécie de "Bíblia" para os dirigentes da Federação "Espírita" Brasileira.
Aparentemente, Kardec havia escrito que Os Quatro Evangelhos em nenhum ponto contradizem às ideias existentes em O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns. Talvez fosse uma tradução equivocada, pois Kardec poderia ter se referido a apenas vários, mas não todos, aspectos presentes no livro de Roustaing.
A tradução da FEB leva a crer que Kardec "não aprovou nem reprovou" o livro de Roustaing e, a princípio, tentou conciliar os dois como se Kardec fosse "pioneiro, porém datado" e Roustaing "mais audacioso e moderno", e em 1913 chegou a usar o nome de Allan Kardec em suposta psicografia para fazer defesa do "Jesus fluídico", tese firmemente rejeitada pelo professor lionês.
A suposta psicografia, dada por Zilda Gama naquele ano, foi publicada no livro O Diário dos Invisíveis, em 1929, pela Editora Pensamento - famosa por editar almanaques anuais em que se destacam previsões astrólógicas:
"Afirmo, agora, baseado nas verdades transcendentes, que Jesus, o Emissário divino, foi o Ente mais evoluído, da mais alta estirpe sideral que já baixou à Terra, em cumprimento de uma incumbência direta do Pai Celestial, e, portanto, o que houve de anormalidade em sua existência não foi uma seleção parcial feita por Deus, mas uma justa homenagem que lhe era devida ao próprio mérito.
"ós, distanciados como estamos de sua perfectibilidade, não gozamos das mesmas regalias ou prerrogativas que lhe foram outorgadas, mas podemos adquiri-las, em séculos e milênios de dedicação, labor, esforço próprio, prática de todas as virtudes. Era, pois, Jesus, já naquela época - a do início do Cristianismo - uma personalidade superior, que, para bem desempenhar sua missão planetária, teve de tecer suas vestes tangíveis, com as quais ofuscou o brilho de sua alma radiosa, constituída de eflúvios cósmicos, que se solidificaram, que se aderiram ao mediador plástico, dando-lhe a aparência de materialidade, mas que podiam ser dissolvidos ao influxo de sua vontade."
É um Kardec estranho, que falava em português e tinha um discurso mais típico a um padre católico, e que destoa do perfil do pedagogo, que na verdade expressou sérias dúvidas quanto à obra de Roustaing e todas as teses que escapam à lógica humana.
Na Revista Espírita, em junho de 1866, entre as páginas 188 e 190, Kardec deixa claro da sua avaliação que severamente questiona, mediante argumentos lógicos, a tese do "Jesus fluídico", em que o professor lionês utilizou os seguintes argumentos, aqui traduzidos:
"E assim, por exemplo, que dá ao Cristo, em vez de um corpo carnal, um corpo fluídico concretizado, com todas as aparências da materialidade e de fato um agênere... Sem a prejulgar, diremos que já foram feitas objeções sérias a essa teoria e que, em nossa opinião, os fatos podem perfeitamente ser explicados sem sair das condições da humanidade corporal".
Kardec questionou o livro de Roustaing pelo fato dele ter se servido apenas de uma única médium (Emile Collignon), de ter apostado nas teses absurdas ("Jesus fluídico", "criptógamos carnudos" e retrocesso moral do espírito, na contramão do aprendizado encarnacional) e de ter um conteúdo bastante maçante e de leitura muito cansativa:
"Achamos que certas partes são desenvolvidas muito extensamente, sem proveito para a clareza. A nosso ver,limitando-se ao estritamente necessário a obra poderia ter sido reduzida a dois, ou mesmo a um só volume e teria ganho em popularidade", escreveu Kardec, no mesmo texto da Revista Espírita.
Irritado com as críticas, Roustaing reagiu furiosamente, adotando uma resposta irônica que confronta com as críticas que Kardec, educadamente, fazia a Os Quatro Evangelhos. E mostra o quanto é o nível moral de cada um: Kardec, sereno, educado mas firme e coerente, e Roustaing, temperamental e de ideias delirantes.
Roustaing respondeu com as seguintes palavras em carta enviada à Revista Espírita, que a edição portuguesa patrocinada pela FEB de Os Quatro Evangelhos incluiu no seu Prefácio sob o título "Resposta ao artigo de Allan Kardec" e o creditou a junho de 1867 e não 1866, que é sua data original:
"Aplicando o nosso método de crítica ao artigo de Junho de 1866 aí vamos encontrar tudo o que apresentamos à consideração dos leitores a propósito da introdução do "Evangelho Segundo o Espiritismo". Tudo lá está: o fundo, a forma, o ostracismo, a infalibilidade. É a aplicação do sistema preconcebido a uma obra a que se faz desde logo o mais "belo enterro de primeira classe" que se pudera desejar".
O argumento irônico, que acusa Kardec de "preconceituoso" ("sistema pré-concebido"), atribui ao professor lionês um trabalho decadente, acusando o Evangelho Segundo o Espiritismo de ser "o mais 'belo enterro de primeira classe' que se pudera desejar".
As supostas mensagens espirituais de Kardec divulgadas no Brasil, quase todas de supostos médiuns e de orientação roustanguista, tentam defini-lo como defensor das teses de Roustaing e portador de um religiosismo que o pedagogo francês nunca teve, em que pese seu respeito às crenças religiosas.
Kardec era um cientista e um defensor da lógica, uma lógica que os religiosistas acusam de "totalitária" e tirânica. No entanto, essas correntes dominantes no dito "espiritismo", em especial o brasileiro, querem fazer, a exemplo dos católicos medievais, criar uma reserva de surrealismo e fantasias nos fenômenos espíritas, determinando a supremacia do fabuloso sobre a realidade.
Desse modo, os espiritólicos sempre querem que alguns fenômenos não sejam desvendados pela razão humana. Tentando intimidar os contestadores, seus líderes, porta-vozes e adeptos argumentam que certos fenômenos "escapam ao raciocínio humano", como se quisessem que eles fossem mantidos intocáveis pelo monopólio da fé.
Mas isso seria impossível, afinal não há como criar um terreno "imaculado" para a falta de lógica, na qual só devemos amar e acreditar em certos fenômenos. Isso seria um absurdo e uma afronta violenta ao dom do ser humano de raciocinar e refletir sobre todos os fenômenos da realidade, havendo sempre de questionar o que escapa do sentido lógico das coisas e seres.
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