quarta-feira, 3 de setembro de 2014

"Espiritismo" brasileiro é brega


O que tem em comum a música brega-popularesca - os chamados "sucessos do povão" que, há pelo menos 45 anos, rolam sucessivamente nas rádios de todo o país - e o chamado "espiritismo" brasileiro?

Diante dessa pergunta, o desavisado deve achar que isso nada tem a ver e que tal questão não é mais do que uma perda de tempo, coisa de quem não tem o que fazer. Mas, analisando muito bem as coisas, tanto o brega-popularesco quanto o "espiritismo" têm tudo a ver entre si, até por conta de uma alusão em comum.

Embora o "espiritismo" brasileiro tenha uma aparente inclinação à "alta cultura", sua doutrina, baseada em valores conservadores e num assistencialismo inócuo às classes populares, cria condições para que a cultura popular sucumba a uma cafonice extrema.

Daí, por exemplo, que não existe qualquer contraste entre toda a retórica ufanista de Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho e o oba-oba que intelectuais badalados fazem em torno do "funk carioca", embora a comparação deixe "horrorizados" muitos espiritólicos.

Isso se deve porque é o mesmo discurso de "positividade", "messianismo", "valores elevados" e "superação" que se vê tanto no Espiritolicismo quanto no "funk", as mesmas baboseiras em torno de "novos valores", "novo estado de espírito", "generosidade" e "aceitação do outro". Até o cortejo do "funk" como suposto prenúncio de um "Brasil moderno" alude ao "coração do mundo".

Para os desavisados, a chamada "cultura" brega-popularesca transforma o povo pobre em caricatura de si mesmo. Do brega de raiz ao "funk", passando por ritmos como "sertanejo", axé-music, "pagode romântico" e "forró eletrônico", criam-se tendências musicais estereotipadas, verdadeiras paródias de folclore brasileiro, só aceitas porque acostumamos mal os ouvidos diante dessas aberrações.

Fora da música, o brega-popularesco se manifesta pelo gigantesco circo de sub-celebridades e pela chamada "imprensa marrom", dotada de jornalistas que exploram o grotesco e fazem apologias sutis à violência, mesmo através da exploração invertida da aparente denúncia de crimes.

No brega-popularesco, o povo pobre é entregue a uma série de visões preconceituosas que, pasmem, é aceita e propagada pela grande mídia, num lobby poderoso que envolve empresários, políticos, fazendeiros, investidores estrangeiros e executivos da grande mídia. E que fazem muita gente boa achar que, em nome do "popular", vale qualquer baixaria, porque "é o que o povo gosta".

Ora, imaginemos o que faz o Espiritolicismo, o "espiritismo" comandado pela FEB mas praticado até por alguns dissidentes, diante das classes populares. Uma doutrina que prega o conformismo - sob as expressões eufemísticas como "abnegação" e "resignação" - , que glamouriza o sofrimento a pretexto dos "benefícios da vida futura", defenderá mais a estagnação do que as melhorias.

Não espere que o "espiritismo" brasileiro lhe garantirá qualidade de vida. As classes populares, quando muito, só recebem as esmolas das "cestas básicas", que até trazem benefícios relativos, porém provisórios, e não estimulam os pobres à busca espontânea da superação por seus próprios meios. E isso se refere às melhores hipóteses.

Nas piores, o "espiritismo" entra no clima do Amigo da Onça (personagem cômico de quadrinhos muito famoso antigamente) e diz que os piores sofrimentos significam "bênçãos eternas na vida futura". É como se dissesse: "Você sofre? Que bom!! Beleza, você está se dando mal na vida, talvez um dia você possa sair dessa situação. Mas um dia, talvez depois de você morrer, OK?".

E aí o que se vê? Povo sem esclarecimento, manipulado pela mídia, consumindo uma pseudo-cultura "popular" de baixa qualidade, e que representa o "mau gosto" que só alegra os intelectuais festivos, dotados de um claro e hipócrita sentimento paternalista e elitista que os faz gente "sem preconceitos", mas extremamente preconceituosa.

O MESMO PADRE

O "espiritismo" brasileiro, nas suas musiquinhas eventualmente cantadas em "centros espíritas", tem sua carga de breguice, que seus dirigentes tentam esconder. Em dado momento ou em outro, vemos músicos alegremente tocando músicas de Fábio Júnior ou até mesmo sucessos de axé-music que tenham mensagens "positivas".

A escolha de músicas, mesmo sendo MPB de qualidade, segue o mesmo critério de ídolos neo-bregas dos anos 90 (como Alexandre Pires, Chitãozinho & Xororó, Leonardo e Daniel) quando tentam soar "sofisticados". Tudo qualquer nota, ou quando é música de qualidade, é aquele sucesso conhecido usado para autopromoção.

A perspectiva, portanto, é brega. E aqui nos lembramos da lenda que se cerca sobre a origem do termo "brega", que veio a substituir o termo "cafona", lançado em 1962 pelo produtor cultural Carlos Imperial para definir sucessos popularescos que perseguiam modismos já superados.

Consta-se que, numa rua de uma capital nordestina, chamada Rua Padre Manuel da Nóbrega, havia um prostíbulo que tocava músicas de gosto duvidoso, pseudo-boleros, falsos seresteiros e tudo que era antiquado, mofado e musicalmente enfadonho, mas feito para o desabafo dos homens que iam lá encher a cara de bebida alcoólica, seja cerveja ou aguardente.

De repente, a placa da rua ficou tão gasta que se quebrou, ficando apenas as cinco últimas letras do sobrenome "Nóbrega". Isso gerou uma piada entre os homens do "povão" que iam lá, e cada um dizia ao outro: "Vamos ao brega"? E aí o termo pegou, lá por volta de 1972, cerca de quarenta anos antes do brega se tornar hegemônico no mercado musical brasileiro.

O Padre Manuel da Nóbrega da referida rua é o mesmo "Ermano Manuel" do movimento jesuíta brasileiro, que havia retornado sob a evocação de Chico Xavier sob o codinome "Emmanuel" (de "E. Manuel", "Ermano Manuel" abreviado).

O próprio Chico personificava a figura de pretenso coitadinho que se via em nomes que vão de Waldick Soriano a MC Guimê, passando por uma galeria que inclui Michael Sullivan, Bell Marques, Gretchen, Joelma e Chimbinha e Luan Santana.

Portanto, é a mesma coisa. Falsa humildade, pose de pretensa vítima, que travestiam uma ideologia que se pretende hegemônica, como se vê no "espiritismo" brasileiro querendo se sobressair aos ideais científicos de Allan Kardec.

O "espiritismo" brasileiro não se tornou hegemônico como força religiosa no país, mas barrou a influência das descobertas científicas de Kardec e subordinou o tema da espiritualidade a um moralismo religioso paralisante, que travou a evolução não só das classes populares como da sociedade brasileira como um todo.

Como o brega, que se vale na obsessão por tendências ultrapassadas, o "espiritismo" se vale pelo que houve de ultrapassado e descartado pelo Catolicismo luso-brasileiro. Ou seja, é uma ideologia que se vale em forjar o "novo" em bases velhas, o que se torna ainda mais antiquado, pela defesa de valores velhos numa roupagem falsamente moderna. O "espiritismo" brasileiro é brega.

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