quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Autora defende tese da "religião espírita" no Brasil

FRANCISCO DE MENEZES DIAS DA CRUZ - Homenageado por uma famosíssima rua no Méier, Zona Norte do Rio de Janeiro, Dias da Cruz foi um dos primeiros espiritólicos do Brasil.

A polêmica continua. Diante do crescimento dos questionamentos acerca das influências católicas no "espiritismo" brasileiro e seu religiosismo extremado, de vez em quando surgem trabalhos que buscam reafirmar essa "religiosidade" diante do risco de perder sua supremacia na conduta da espiritualidade no Brasil.

As universidades tornam-se arenas dessa batalha argumentista entre científicos e religiosos, um cabo-de-guerra em que está em jogo a sobrevida ou o desgaste definitivo de uma linha de "espiritismo" que sempre dominou no Brasil e do qual se conhecem celebridades como Chico Xavier, Divaldo Franco, José Medrado, Yvonne Pereira e outros.

Do lado científico, vemos o caso de Dora Incontri, por exemplo, que reclama da discriminação, feita dentro dos meios ditos "espíritas", dos aspectos educacionais e científicos da doutrina de Allan Kardec, ele que, antes de tudo, foi um pedagogo, um cientista e acadêmico e que priorizava o raciocínio lógico e o discernimento.

Mas, do lado religioso, há outros casos. Há o de Alexandre Caroli Rocha, que se esforça em legitimar academicamente o mito de Chico Xavier. Mas aqui há também o caso da socióloga da USP, Célia da Graça Arribas, que escreveu um artigo buscando reafirmar a tese da "religiosidade" do "espiritismo" brasileiro, que ela recusa-se a admitir como deturpação.

Intitulado "O Caráter Religioso do Espiritismo", o artigo foi publicado no periódico goiano Fragmentos de Cultura, volume 3, número 1, edição de janeiro a março de 2013. A autora busca creditar a "religiosidade espírita" às tradições culturais de religiosidade atribuídas ao povo brasileiro.

FALHAS

O artigo se esforça a apresentar um histórico da Doutrina Espírita e das origens do "movimento espírita" brasileiro. Ela atribui a opção da religiosidade dos "espíritas" como "defesa" diante das reações negativas sofridas pela Igreja Católica, pela Polícia, pela Justiça e até pela imprensa e pela comunidade científica.

A argumentação se baseia na tese de que o "movimento espírita", comprometido com ações filantrópicas e atividades de "curas mediúnicas", estaria promovendo heresia religiosa e práticas ilegais de curandeirismo, segundo acusações cometidas na época, por volta do começo do século XX.

No entanto, a autora comete falhas. Ignora que Allan Kardec não escreveu apenas os cinco livros básicos do Espiritismo e os artigos da Revista Espírita, pois o texto não menciona o introdutório mas fundamental O Que é o Espiritismo?, síntese subestimada do pensamento de Kardec. Sem falar de Obras Póstumas, lançado após o falecimento de Kardec.

A autora fala das disputas dentro das raízes do "movimento espírita", polarizada entre os científicos - dos quais, segundo a autora, se situavam os "psiquistas" e os "ocultistas" e se ocupavam a analisar cientificamente os fenômenos espirituais - e os religiosos, que se ocupavam mais na divulgação da "moral cristã", dentro de uma perspectiva herdada do catolicismo.

Dentro de uma visão positivista, Célia Arribas lamenta o que ela entende como disputa pela "primazia do movimento espírita", tomando partido da tendência religiosa em detrimento da científica. E ela segue a tendência espiritólica de evitar detalhar a influência de Jean-Baptiste Roustaing, se limitando a citar "roustanguistas" como uma das facções do "espiritismo religioso".

Até parece que Roustaing virou um palavrão no "movimento espírita" brasileiro, talvez pelo fato de que ele gerou uma constrangedora polêmica, da qual a FEB tenta a todo custo apagar. As questões da reencarnação em formas animais, vegetais ou microbiológicas e do "Jesus fluídico" quase puseram a perder o "movimento espírita", que gerou dissidências surgidas em situações bastante conflituosas.

Dentro dessa visão pró-religiosa, Célia descreve, entre outras coisas, o fracasso do I Congresso Espírita Brasileiro, promovido pelo Centro de União Espírita Brasileiro, por causa do boicote dos "espíritas religiosos" a essa organização comandada pelo subestimado líder espírita, de tendência científica, o ítalo-brasileiro Afonso Angeli Torteroli.

O CUEB fracassou e o grupo dos "religiosos", comandado por nomes como Augusto Elias da Silva, Francisco de Menezes Dias da Cruz e Adolfo Bezerra de Menezes, decidiu fundar em 1884 a Federação "Espírita" Brasileira (FEB).

Elias da Silva e Dias da Cruz foram depois homenageados como nomes de ruas na Zona Norte do Rio de Janeiro. Elias da Silva é nome de uma rua no bairro de Quintino, entre a Piedade e Cascadura, enquanto que Dias da Cruz é nome de uma famosíssima avenida - apesar do status oficial de "rua" - do bairro do Méier, entre o Engenho Novo e o Engenho de Dentro.

A autora admite o poder centralizador da FEB e a supremacia da tendência religiosa. Ela menciona que os objetivos originais da FEB eram, primeiro, o de "regular as ideias espíritas", segundo, o de "respeitar todos os grupos espíritas" e, terceiro, "ser a instituição oficial de divulgação do Espiritismo".

Quanto ao segundo ítem, sabemos que ele não foi cumprido. A prevalência do grupo religioso deixou o cientificismo à margem, mesmo quando ele é mencionado nas publicações "espíritas" em todo o país, já que ele é descrito geralmente de forma pedante e superficial, geralmente para justificar visões místico-religiosas estabelecidas pelo "movimento espírita".

A opção religiosa é descrita pela autora como intenção da FEB de transformar o Espiritismo em mais uma religião no Brasil, enquanto reagia às pressões da sociedade, temerosa da disseminação descontrolada de práticas de cura, e de acusações relacionadas à exploração da credulidade popular.

Citando Bezerra de Menezes, Célia Arribas descreve o caráter "seletivo" da FEB quanto à assimilação das ideias de Allan Kardec:

"Coube então a Bezerra de Menezes e a seu grupo de amigos, todos da FEB, selecionar e destacar na obra de Allan Kardec determinados aspectos em detrimento de outros, buscando encadeá-los de maneira a dar-lhes uma ordenação e uma coerência com relação à própria cultura brasileira e seus hábitos mais cotidianos".

Em outras palavras, a autora atribuía a "adaptação seletiva" das ideias de Kardec à "realidade brasileira", tirando os "excessos" do cientificismo kardeciano em prol da assimilação de caraterísticas consideradas tradicionais da religiosidade brasileira.

Em seguida, descrevendo as relações entre a "cura espírita" e a homeopatia - especialidade de Dias da Cruz, Bezerra de Menezes e outros dirigentes fundadores da FEB - , Célia menciona a influência do Magnetismo de Franz Anton Mesmer, sobretudo nas questões das energias fluídicas do passe.

Todavia, Mesmer foi tão desprezado quanto Kardec, e no Brasil não existe um só livro de Mesmer que tenha tradução local, enquanto sua teoria magnetista é desconhecida nos meios "espíritas" em geral, fazendo com que passes e tratamentos espirituais fossem apenas meros arremedos terapêuticos, sendo os passes reduzidos a uma combinação de transe mediúnico e mãos abanando sobre as cabeças dos assistidos.

Célia ainda usa a diversidade religiosa como pretexto para a validação do "espiritismo religioso", sem creditar explicitamente a influência católica no "espiritismo" brasileiro,  apesar da citação de uma frase de Luiz Olympio Telles de Menezes, precursor do "movimento espírita":

"(...) o Espiritismo e o Catolicismo são a mesma Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo: somente estão mudados os tempos e as palavras: o Espiritismo é o tradutor fiel, pelos enviados de Deus, das doutrinas do Evangelho".

Apesar dessa referência que claramente evoca a influência católica no "espiritismo" brasileiro, a autora nem sequer cogita definir o "movimento espírita" como uma dissidência católica ou como um neo-catolicismo de cunho espiritualista e visão reencarnacionista.

Ela descreve o conflito entre a Igreja Católica e o "movimento espírita" tão somente como um confronto entre uma religião tradicional e outra "emergente", sem sequer citar o "espiritismo" brasileiro como um neo-catolicismo, de perfil heterodoxo, que desafiava o Catolicismo ortodoxo.

Em vez disso, Célia tenta definir o "espiritismo" brasileiro como uma "adaptação" das ideias de Allan Kardec às "coordenadas históricas e sociais do Brasil", baseadas na "diversidade religiosa".

Ela desqualifica as críticas e acusações de deturpação das ideias originais de Kardec atribuindo a ela "ignorância" às condições sociais e históricas do "povo extremamente místico", para o qual o "espiritismo" teria se "adaptado" para ser "melhor compreendido".

No entanto, o que se observa, no decorrer do "movimento espírita" brasileiro, foi o completo distanciamento das ideias originais de Kardec, praticamente o desprezo absoluto, que só não foi às últimas consequências por causa de traduções "moderadas" dos textos do professor francês, sobretudo as de Guillon Ribeiro.

Na prática, porém, o "espiritismo" nivelou-se por baixo e, no seu religiosismo extremo, esqueceu o lado científico da Doutrina Espírita e, para piorar, lançou mão de fraudes e deturpações - ignoradas pelo texto da socióloga - que simplesmente tornaram o "espiritismo" brasileiro numa seita confusa e corrompida.

Portanto, longe de ser qualquer tipo de adaptação brasileira das ideias de Allan Kardec, reduzido apenas a um nome a ser bajulado, o "espiritismo" brasileiro reduziu-se a um neo-catolicismo de matizes ainda herdadas do Catolicismo português, ainda carregado de conceitos medievais, e que era influente na época do Segundo Império, época da fundação da FEB.

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