sexta-feira, 1 de agosto de 2014
"Número Infinito" teria sido pastiche da poesia de Augusto dos Anjos
Uma paródia. É o que se pode constatar, numa pesquisa bastante cautelosa, quando se lê o poema "Número Infinito", de Augusto dos Anjos, estranhamente excluído na sexta e definitiva edição de Parnaso de Além-Túmulo, suposta psicografia de Francisco Cândido Xavier que envolve nomes de diversos poetas e escritores falecidos, além de um tal Amadeu e um autor desconhecido.
A exclusão do poema de Augusto dos Anjos não encontrou justificativa oficial e mesmo o pesquisador universitário, Alexandre Caroli Rocha, deixou passar essa omissão. Mas tudo indica que o texto teria sido excluído por haver acusações de pastiche dadas contra o autor.
Há coisas muito estranhas por trás dessa suposta psicografia. Primeiro, pela dificuldade de se juntar tantos falecidos assim de graça. Nem todo falecido aparece a dispor de qualquer um para mandar uma mensagem religiosa chinfrim. E, como insistimos, se é difícil reunir todos os ex-colegas de escola na infância depois de 20 anos, imagine espíritos falecidos em épocas distantes.
Segundo, é a manobra do espírito de Emmanuel, jesuíta reacionário e radicalmente católico, que havia decidido a inclusão e exclusão tendenciosas de poemas e nomes de autores, dentro de uma "missão religiosa" que nem todo aquele que morre têm interesse e disposição em transmitir.
Terceiro, é a manipulação do conteúdo de sucessivas edições, com alterações de versos e palavras e supressão de poemas "repetitivos" ou "violentos", que põe em xeque o perfeccionismo da figura de Chico Xavier, cuja insegurança já rejeita qualquer condição de "Kardec brasileiro", seja na condição de "discípulo", seja na inconcebível condição de "reencarnação" do professor lionês.
Há também o ato, denunciado pelo crítico literário e escritor Osório Borba, de que "Número Infinito" seria inicialmente atribuído a Antero de Quental, poeta português da fase final do Romantismo, erro depois corrigido.
Quem é considerado evoluído tem segurança para transmitir uma mensagem a mais perfeita e acabada possível. Se ele não tem segurança quanto à perfeição de sua mensagem, se ela tem erros e falhas, ele não transmite. Guarda-a consigo até refazê-la de forma que estivesse pronta para ser lançada a público.
Aqui reproduzimos o poema "Número Infinito", atribuído ao espírito de Augusto dos Anjos, que segue sutilmente o panfletarismo religioso, investindo na mesma narrativa do sofrimento no umbral e no reconhecimento da espiritualidade dentro do ponto de vista espiritólico.
Sem nos atermos a uma análise profundamente semiológica, reproduzimos este texto e "Último Número", que Augusto produziu em vida e que os espiritólicos comparam ao poema "espiritual", como se fosse uma suposta continuação, e apresentamos outros questionamentos a respeito do pastiche feito por Chico Xavier.
NÚMERO INFINITO - Atribuído ao espírito de Augusto dos Anjos
Presente em Parnaso de Além-Túmulo, de Chico Xavier, Ed. FEB, da 1ª à 5a edições
(1932, 1935, 1939, 1944 e 1945)
Sístoles e diástoles derradeiras
No hirto peito, rígido e gelado;
E eu via o Último Número extenuado,
Estertorando sobre as montureiras.
Interregno, escuridão, ânsia e inferneiras;
Depois o ar, o oxigênio eterizado,
E depois do oxigênio o ilimitado
Resplendente clarão de horas primeiras.
Busquei a última visão das vistas foscas
O Derradeiro Número entre as moscas,
À camada telúrica adstrito;
E eu, vítima dútil da desgraça,
Vi que cada minuto que se passa
É a nova luz do Número Infinito.
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O ÚLTIMO NÚMERO - Augusto dos Anjos (do livro Eu e Outras Poesias, 1920)
Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado,
A Idéia estertorava-se... No fundo
Do meu entendimento moribundo
Jazia o último Número cansado.
Era de vê-lo, imóvel, resignado,
Tragicamente de si mesmo oriundo,
Fora da sucessão, estranho ao mundo,
Com o reflexo fúnebre do Incriado:
Bradei: - Que fazes ainda no meu crânio?
E o Último Número, atro e subterrâneo,
Parecia dizer-me: "E tarde, amigo!
Pois que a minha antogênica Grandeza
Nunca vibrou em tua língua presa,
Não te abandono mais! Morro contigo!
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Se "O Último Número" mais parece um réquiem da vida do poeta parnasiano, "Número Infinito" tem a pretensão de ser a "continuidade" daquele, correspondendo a uma suposta impressão de Augusto em relação ao mundo espiritual.
A elaboração é engenhosa e sutil, mas isso não quer dizer que seja autêntica. Todo pastiche têm sempre algum aspecto de semelhança, por menor que seja, e se "Número Infinito" não corresponde exatamente a uma paródia de "O Último Número", ele evoca vários clichês que Chico copiou do poeta paraibano falecido com apenas 30 anos de idade.
As duas únicas ligações entre os dois poemas estão, além da evocação do título do poema original no terceiro verso do poema "espiritual", o que se vê na expressão "Hirta", no primeiro verso de "O Último Número", e "Hirto peito", no segundo verso de "Número Infinito".
O que se observa também é que, se Augusto dos Anjos era muito trágico nos versos que escreveu em vida, neste o suposto espírito do poeta parece seguir, sob uma perspectiva por demais religiosa, a consciência da "vida infinita".
O poema do "espírito Augusto dos Anjos" é um soneto que narra as impressões da morte na primeira estrofe (quatro versos), o "despertar" do espírito na segunda estrofe (quatro versos), a superação das impressões materiais na terceira (três versos) e na consciência (espiritólica) da espiritualidade ("A nova luz do número infinito"), na quarta e última (três versos).
Para os desavisados, a erudita expressão "À camada telúrica adstrito" - com a palavra "adstrito" copiada de "Versos a um Cão" e "telúrica" presente em "Monólogo de uma Sombra" (ou "Diálogo de uma Sombra", segundo algumas fontes) - quer dizer, numa tradução em linguagem simples, "à matéria terrena preso".
Houve até mesmo polêmicas nos meios espiritólicos quanto à exclusão deste poema. Carlos Bernardo Loureiro, por exemplo, acusou a FEB de ter ordenado a exclusão do livro, contrariando a fidelidade histórica (quanto a época) de Parnaso de Além-Túmulo. Já o escritor Clóvis Ramos, tomando o partido da FEB, atribuiu a exclusão à decisão dos "espíritos" em torno de Xavier, como Emmanuel.
Apesar do esforço do poema "espiritual" reproduzir a linguagem erudita de Augusto dos Anjos, nota-se que a mensagem é mais "domesticada", mais parecendo um panfleto religioso do "espiritismo" brasileiro e que, poeticamente, perde a emotividade intensa da poesia original de Augusto.
O poema tem tudo para ser considerado um pastiche, já que a semelhança pode até ser habilidosa, mas ela só indicaria "veracidade" para leigos em poesia. Para quem conhece o estilo e a personalidade de Augusto dos Anjos, sabe-se que o domesticado poema "espiritual" não é mais do que uma paródia do que ele havia produzido em vida. Com as semelhanças que a paródia tenta obter da fonte original.
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