quarta-feira, 18 de junho de 2014

Espírito pode mudar, mas dentro do contexto de sua personalidade


Um comentário numa comunidade relacionada ao Espiritismo nas mídias sociais chamou a atenção, a respeito do suposto José do Patrocínio da mensagem da FEB, quanto à hipótese de que, no passado, o abolicionista teria sido um manifestante junto à sua Guarda Negra, realizando protestos de rua contra os arbítrios do governo do então presidente Floriano Peixoto, o "marechal de ferro".

O internauta disse que José do Patrocínio teria "mudado de postura" e, por isso, "fazia sentido" ele agora pedir para que "oremos pela paz". Tudo bem que mudanças de postura são possíveis, mas o contexto da mensagem indica se essa mudança tem ou não a ver com a personalidade do falecido em relação ao que ele era na sua famosa encarnação.

Pode ser que José do Patrocínio não decidisse por fazer protestos de rua, se estivesse vivo hoje. Mas não é provável que ele as condenasse no seu todo, preferindo, pelo contexto do país hoje, que as pessoas fizessem protestos, sim, mas sem provocar desordem.

No entanto, é bem menos provável que o suposto José do Patrocínio da FEB seja, a partir dessa postura, o verdadeiro espírito do abolicionista. Isso porque outros elementos bastante duvidosos aparecem na famosa mensagem, já reproduzida aqui, cujo tom religioso e paroquial destoam do discurso usado pelo líder abolicionista, famoso pelos seus textos contra a escravidão.

Imaginemos por exemplo uma suposta psicografia de uma composição de Cazuza, já que ele foi assunto de uma postagem mais recente. Digamos que essa composição seja uma MPB tradicional, sem qualquer sombra de uma sonoridade roqueira.

Se for por esse aspecto apenas, isso faria um bom sentido, porque sabemos que Cazuza foi capaz de faixas assim. "Faz Parte do Meu Show" e "Codinome Beija-Flor" são exemplos mais famosos. Cazuza, além disso, já gravou música de Cartola e compôs com Gilberto Gil. A "mudança" não destoaria do que o cantor e compositor seria capaz de fazer.

Agora se as letras fossem carregadas de mensagens "fraternais", de panfletarismo religioso, a desconfiança seria inevitável, porque sairia do contexto da personalidade do cantor, seria uma postura que, por mais "positiva" que possa fazer, soa bastante falsa.

 Nota-se que as mensagens da FEB atribuídas a diferentes espíritos soam bastante padronizadas. O próprio panfletarismo religioso já é, em si, uma padronização, como se não pudesse haver uma mensagem espiritual laica.

É claro que as críticas recebidas pelos supostos médiuns - ou mesmo por médiuns "anti-médiuns" (não-intermediários) - fizeram com que os livros "espirituais" tivessem uma diversidade discursiva maior. Já não era mais uma mesma obra com diferentes personalidades, mas diferentes obras de uma mesma pregação religiosa.

A imaginação dos "médiuns" teria que ser caprichada. Se é para imitar Juscelino Kubitschek, que se vá, por exemplo, às edições da revista Manchete e aos livros de Ronaldo Costa Couto e Maria Victoria Benevides sobre o ex-presidente e ver alguns vídeos no YouTube, e assim caprichar na imitação discursiva do político mineiro.

Se é para imitar Cazuza, deve-se evitar os "micos" da pseudo-psicografia de Raul Seixas (o tal "Zílio"), criando uma linguagem jovial e próxima da realidade mais recente do ídolo, ainda que continuasse o preço da pregação religiosa.

Claro que é difícil lançar supostas mensagens espirituais de Ronnie James Dio, famoso roqueiro inglês, de Adam Yauch, rapper dos Beastie Boys e do músico punk paulistano Redson, da banda Cólera. Adam e Redson foram conhecidos por suas posições pacifistas, mas nunca seriam capazes de fazer um discurso de panfletarismo religioso no estilo que se conhece nas mensagens "espíritas".

Portanto, é preciso cautela quando se observam possíveis mudanças de posições dos espíritos dos falecidos. Essas mudanças não podem fugir dos contextos de suas personalidades, as pessoas mudam posições mas não fogem de sua essência.

Espíritos do além podem até aprender muito o que em vida não souberam, mas nunca iriam fugir de suas marcas pessoais. Se a mensagem "espiritual" foge da essência da personalidade que lhe é atribuída, ela é falsa. E foi o caso do "José do Patrocínio" da FEB, cuja mensagem está mais próxima do estilo de um cardeal de segunda categoria do que de um histórico ativista contra a escravidão.

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