domingo, 30 de março de 2014

Reino de Luz?


Sinceramente, saber que Chico Xavier defendeu a ditadura militar é tão ruim quanto ver que o jornalista Bóris Casoy participou do Comando de Caça aos Comunistas e a Folha de São Paulo ofereceu suas viaturas para transportar os presos políticos para o DOI-CODI.

Chico, tido como "o homem chamado amor" ou "a personalidade mais evoluída que passou pela face da Terra" - um periódico "espírita" chegou a dizer que o anti-médium mineiro era "mais evoluído" do que Jesus - , falava que a ditadura militar garantiria o "Reino de Luz" a que os "espíritas" atribuíram como destino futuro da nação brasileira.

Ora, ora. Isso não passa de uma grande bobagem. O Brasil não tem predestinação alguma, até porque está sofrendo crises piores do que antes do golpe, e está muito longe de ser a potência econômica do mundo, quanto mais para pátria-guia da espiritualidade. Vamos parar de sonhar e veremos, ao usar a lógica, o quanto o "espiritismo" brasileiro está completamente ERRADO.


Em primeiro lugar, a aura de solidariedade desse projeto de "construir o Reino de Luz" foi por água abaixo quando um dos generais que se adiantou na derrubada do presidente João Goulart, o mineiro Olímpio Mourão Filho, foi deixado à margem pelos oficiais das Forças Armadas, não recebendo qualquer benefício real por favorecer o que o generalato tanto queria: a derrubada de Jango.

Olímpio não chegou a ser preso nem torturado, mas seu papel de adiantar um golpe, que outros generais e políticos civis estavam discutindo como seria, foi simplesmente desvalorizado, tanto que ele acabou recebendo o apelido de "vaca fardada", em alusão à "vaca de presépio" que só serve de enfeite.


Outro que foi deixado de lado foi o governador do antigo Estado da Guanabara - composto pelo município do Rio de Janeiro - , o também jornalista Carlos Lacerda. Desde quando o Brasil era governado por Getúlio Vargas, durante o qual chegou a sofrer uma tentativa de homicídio, Lacerda defendia o golpe militar, e em 1964 foi um dos que mais queriam a queda de Jango.

Pois a "solidariedade" daqueles que, segundo Chico Xavier, estavam construindo o "Reino de Luz", que não se deu com Olímpio Mourão Filho, também não se deu com Carlos Lacerda, visto como um "chato" pelos generais.

Pior: ao ser traído pelos generais que ignoraram sua campanha golpista, Carlos Lacerda se reconciliou com seu maior inimigo político, Juscelino Kubitschek, e ainda perdoou João Goulart, formando, os três, uma Frente Ampla para pedir a redemocratização do país, que irritou os generais e teria feito a Operação Condor, reunindo ditaduras do Brasil e outros países, sutilmente matarem os três.


Na instauração do "Reino de Luz" que exigiria "alguns sacrifícios" ao povo brasileiro, também a "solidariedade" se refletiu no caso do citado Kubitschek. Ex-presidente da República e ligado ao conservador PSD (Partido Social Democrático), Juscelino defendeu o golpe militar preocupado com o envolvimento do seu ex-vice, João Goulart, então presidente, com comunistas.

Juscelino era um político moderado e foi pego de surpresa quando os militares que tomaram o poder o colocaram entre os primeiros políticos cassados da vida pública. O ex-presidente, que apesar de mineiro era senador por Goiás, queria concorrer à Presidência da República em 1965, e não só ele foi cassado como a ditadura se afirmou definitiva e iria contribuir para a morte suspeita de JK em 1976.


Dando sequência ao clima de "solidariedade" garantido pelo "Reino de Luz" da "Revolução de 1964", vemos que o clima contagiou a juventude de tal forma que, no auge dos protestos estudantis naquele 1968 - em que um estudante que nem era militante, o modesto secundarista Edson Luís, foi morto no meio do tiroteio entre alunos e policiais - , houve um sangrento conflito em São Paulo.

Foi na Rua Maria Antônia, onde se situam até hoje, de um lado, a Universidade Mackenzie, prebisteriana e conservadora, e a Faculdade de Filosofia da USP, esquerdista. De um lado, estudantes da Mackenzie ligados ao Comando de Caça aos Comunistas faziam provocações aos estudantes da USP, que estavam em outro.

As agressões no entanto foram para o extremo, quando os estudantes da Mackenzie ligados ao CCC que estavam armados puxaram o gatilho e acabaram matando um secundarista que nada tinha a ver com o caso, José Guimarães, vítima de bala perdida. Bóris Casoy não participou da violência, mas assistia "de camarote" ao incidente.


E o que dizer mais sobre o "Reino de Luz" que o "iluminado" Chico Xavier tanto falava, com seus dóceis apelos para que nós, "em nome do Nosso Senhor Jesus Cristo", aceitemos o governo das Forças Armadas?

Simples. Aos viajores e caminheiros da "doutrina de amor, paz e caridade", é bom deixar claro que o governo "da democracia e da liberdade" exercido pelas Forças Armadas em 1971, época em que Chico fez os "preciosos" apelos, já cometia atrocidades vergonhosas contra muitos cidadãos, a pretexto de "expurgar" os "últimos vestígios da rebelião comunista" que se via sobretudo na guerrilha armada.

Seminários eram realizados, com patrocínio do Departamento de Estado dos EUA, para demonstrar o funcionamento de aparelhos de tortura. Um deles, e o mais rudimentar, era o "pau-de-arara", em que uma pessoa era pendurada num pedaço de pau e recebia de chicotadas até golpes de cacetete que, por vezes, eram enfiados até no ânus.


Outros recursos de tortura incluíam choques elétricos com os pés postos num balde de água, afogamentos, ou a simples surra, com o prisioneiro amarrado numa cadeira. E tudo isso de maneira oficial, porque há casos de enforcamento, como o que vitimou o jornalista da TV Cultura, Vladimir Herzog, não assumidos publicamente pelo DOI-CODI na época.


E o que dizer de tantas pessoas que a ditadura mata e esconde seus corpos, alegando supostos acidentes e suicídios? O que dizer, por exemplo, do caso do deputado paulista Rubens Paiva (pai do escritor Marcelo Rubens Paiva), detido e morto por conta de seu passado político ligado ao PTB de Jango e sua oposição ao regime militar?

Tantas pessoas tiradas do convívio de seus familiares, detidas de forma arbitrária por causa das "atividades subversivas", e cujas vidas foram ceifadas de forma fria e cruel, em circunstâncias e condições que só tardiamente começam a serem esclarecidas.

Mas talvez o "luminoso" Chico Xavier, com sua consciência "tranquila", tenha achado que as vítimas da ditadura militar tenham sido antigos carcereiros, delegados ou mesmo políticos romanos que haviam capturado inocentes para serem presos, torturados e mortos. Ele seria capaz de tanta falácia?

Será que esses episódios não bastam para desmentir a tal "construção do Reino de Luz" que Chico Xavier tanto disse? Por outro lado, bastariam que a gente apenas "orasse" e "se unisse numa esfera de amor", dando "boas energias" para que nossos generais "construíssem" a "sociedade iluminada do futuro" e "cumprissem" as promessas da FEB de predestinação humanitária do Brasil?

A pregação de Chico Xavier caiu em xeque-mate, na medida em que a "sociedade de amor e caridade" que ele acreditava ter sido construída pela ditadura militar era na verdade um regime de muita crueldade, de medidas desumanas e outras imprudentes, já que a sucessão de generais no Poder Executivo não conseguiu realizar a tão prometida melhoria geral para o país.

Pelo contrário, o enfraquecimento do Legislativo e do serviço público favoreceu esquemas de corrupção. A baixa auto-estima popular enfraqueceu nossa cultura. Houve a violenta crise econômica, que só se agravou com a alta do preço do petróleo no Oriente Médio, em 1973, que botou o "milagre brasileiro" para o lixo.

Houve o arbítrio da tortura, da censura que atrasava até mesmo a expressão e veiculação de produtos culturais e informativos, tornando-os não só inócuos e sem graça, mas datados e inúteis. O país acabou se tornando acéfalo, com tanta gente vivendo no exílio. Quem quisesse ser um brasileiro de verdade, o melhor é viver fora do país.

Essa é a dura realidade que não está nas delirantes fantasias de contos de fadas de Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, cuja autoria se atribuiu a um Humberto de Campos que nunca teria escrito uma bobagem dessas. E que mostra o quanto de erros cometeu Chico Xavier, e não apenas erros comuns, mas os gravíssimos, que seguramente desmentem seu mito de "espírito superior".

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